De
frente com o “dito cujo”
- O Tião tá chegando! O Tião tá chegando na
pracinha do chafariz! - Gritou alguém entrando no boteco do Manuel em disparada,
enquanto todos se levantavam e corriam pra porta só para ver o cabra.
- Esse Tião é porreta por demais mesmo,
hein! Bem que ele disse que num tinha
medo do escravo Isidoro. - Disse Manuel orgulhoso pelo feito
do amigo.
- S’impolga não Manoel, esse cabra tem muita
história pra contar.
- Ô Remundão, deixa de prosa frouxa, homi. O
cabra foi num pé e voltou no outro e tu ainda discunfia de sua macheza, sô?
- Remundão tem razão. - Indagou Sandoval
coçando o queixo. - Subir a serra até o cruzeiro do Isidoro naquela trilha
pedregosa e ainda no escuro leva muito tempo.
- Quem sabe o Isidoro não deu uma carreira
nele morro abaixo e o cabra chegou aqui mais ligeiro?
- Sei não, viu. Ainda vai aparecer muito
caroço nesse angu.
Assim que o Tião passou pelo boteco do Manuel
em direção ao carro de som, foi ovacionado com uma salva de palmas e muita
gritaria. Paulinho violeiro sapecou a
mão no microfone e pediu que o cabra subisse ao palco, porém, um silêncio
sepulcral tomou conta do lugar e acreditem ou não, lá estava ele, o assombração
do escravo Isidoro em pessoa, ou não. A figura era tão feia, mas tão feia que os
que não desembestaram rua afora de medo, ficaram ali plantados que nem
estátuas, sem conseguir arredar pé do lugar. Tião olhou de butuca o que tava acontecendo e quando pregou os olhos no fantasma,
suas pernas bambearam e uma baita tremedeira tomou conta do cabra, que já não
tinha nem mais força pra correr.
- Meu Deus do céu, minha Nossa Senhora, meu
Jesus Cristo, me ajuda!!! - Resmungou Tião sem tirar o olho do coisa ruim.
Dona Zefinha assim que viu o fantasma
desmaiou na porta do boteco do Manuel e lá ficou, já que ninguém tinha coragem
pra se mexer.
- Tião!!
Seu mentiroso!! - Gritou Isidoro. - Tu vai se arrepender de ter me desafiado,
cabra da peste! Quero tudinho os meus diamantes agora.
Quando ouviu o seu nome, “boca-de-fogo”
quase se borrou nas calças.
- Cumé que esse infeliz sabe o meu nome, meu
Jesus cristin? - Perguntou Tião olhando para os amigos na porta do boteco.
Sandoval, neguin esperto por demais, ficou incucado com aquilo e disse:
- Esse fantasma tá meio mentiroso, sô. Onde
já se viu o assombração do escravo Isidoro usar chapéu e capa? Tá parecendo o
batman?
- E num é que o minino Sandoval tem mesmo razão? - Concordou Manuel da porta do boteco.
Bastou uma ponta de desconfiança pra todo
mundo criar coragem e partir pra cima do assombração do Isidoro. O infeliz num
teve tempo nem de piscar o olho antes de quase ser linchado pelo povo. Pra sua
sorte, Remundão tomou partido e protegeu o infeliz que por sua vez, acusava o
prefeito de mentiroso e de estar enganando o povo de Curralin.
- Quem é esse cabra? - Perguntou Manuel se
aproximando do dito escravo. O caboclo tava todo pintado de tinta preta e as
roupas molambentas parecendo um mendigo.
- Mas que diacho de cabra esquisito é esse?
- S’impolga não, que a gente vai descobrir
nesse minuto.
- Por favor, não me machuquem! Eu tô falando
a verdade. A culpa é do prefeito. - Acusou.
- Quer dizer que o prefeito mandou você vir
até aqui fingindo ser o escravo Isidoro? - Perguntou Remundão.
- Eu não, o Tião.
- O Tião mandou?!?
- Não, o prefeito.
- Eu já num tô intendeno é mais nadica de
nada. Uma hora é o Tião, na outra é o prefeito. - Disse Zé das Candeia coçando
a cabeça.
- Vixi Manuel, num foi tu quem vendeu essa
cachaça pra esse cabra não, foi?
- Larga de sê Bobo, sô. - Defendeu o dono do
boteco aperreado. - Eu nunca vi esse cabra da peste na minha frente, ôxente, e
pro seu governo, a cachaça que o Zé traz é a melhor cachaça dessas redondeza.
- É mió deixá esse cabra í s’imbora de uma
vez, antes que ele apoquente ainda
mais as ideia.
- Cês vão deixá o coisa feia ir embora assim
depois de me chamar de mentiroso?
- Calma Tião, o infeliz tá desmiolado das ideia
e num sabe nem o que tá falando. - Interveio Manuel.
- O prefeito e esse daí que se diz cabra-macho
tão enganando todo mundo. É tudo armação pra enganar vocês. - Gritou o falso
fantasma.
- Mas num foi tu que fingiu ser o escravo
Isidoro? - Observou Chicão.
- Já que ninguém acredita em mim, então pode
ficar com isso também, que eu vou é embora desse
lugar maluco. - Disse o cabra entregando
a sacolinha com os diamantes para o Tião e tomando rumo.
- Mais diamante? - Estranhou ele. - Quanto
mais, mió. - Completou Tião guardando a sacolinha no bolso sem entender nada e
assim que se virou em direção ao palco onde esperava sua glória, todas as luzes
do lugarejo se apagaram, virando uma penumbra só, enquanto uma ventania dos
diabo começava a assoprar misteriosamente, fazendo o povo se proteger pelos
cantos da praça.
- Mas que diacho, sô. Será que ninguém vai
me deixar receber minhas honras? – Praguejou Tião contrariado.
Na mesma hora, surgiu um clarão repentino na
entrada da praça e todos se voltaram para ver o que estava acontecendo.
Lentamente a luz ia se aproximando e todos corriam desenfreados pelos becos com
medo daquela coisa escabrosa.
- Mas que disgrameira de coisa esquisita é essa agora? _ Perguntou Chicão
tentando descobrir o que era aquilo no meio daquela estranha luz amarelada. O
barulho de correntes sendo arrastadas pelas pedras que cobriam as ruas ficava
cada vez mais alto e as sombras que se formavam nas fachadas das casas, ainda
mais assustadoras. Bem que o povo fala, desgraceira pouca é bobagem e àquela
altura, ninguém já nem respirava mais. Tião, coitado, o cabra parecia que já
tinha morrido e não percebeu. Os olhos plantados naquela coisa do capeta que
vinha se aproximando em sua direção, estavam tão esbugalhados que pareciam duas
jabuticabas graúdas a ponto de cair do rosto pálido que nem cera. O infeliz já
tinha molhado as calças e só esperava o pior, o que não demorou acontecer
quando a criatura infernal chamou pelo seu nome. O caboclo se borrou todo. Dona Zefinha que mal acordara do primeiro desmaio,
se esborrachou de novo no mesmo lugar. Coitada, mais uma queda daquela e a dita
empacotava de vez. Manuel parecia uma estátua com meio palmo de língua pra fora
da boca e só num dispiguelou de vez
ladeira abaixo porque não conseguia nem mesmo se mexer. Zezito não parava de
resmungar o que nem ele mesmo sabia o que estava dizendo e fazer o que parecia
ser o sinal da cruz com as duas mãos, enquanto o coisa-ruim se aproximava arrastando suas correntes. Assim que
distinguiram o que era aquela figura dos infernos, quem não descambou pelos
becos, certamente é porque já estava todo borrado. Um negão de dois metros de
altura, 120 quilos, as roupas surradas das minas e sujas de sangue pelas
chibatadas, correntes nos pés descalços e um candeeiro completamente
enferrujado, porém aceso, acompanhado por dois escravos de menor porte que lhe
iluminavam o caminho, parou a alguns metros do Tião “boca-de-fogo” e olhou-o
por alguns segundos. Segundos? Aquilo parecia umas cem encarnações na vida do
infeliz diante do filho do demônio. Quando o coisa-ruim do fantasma do Isidoro abriu a boca para falar o nome do
Tião, o som parecia vir das profundezas do inferno.
- Vosmicê buliu com minhas pedrinha e meu
candieiro... e eu vim aqui
pra mode pegá eles
de
volta! - Disse.
Tião coitado, tava mais petrificado do que
as rochas da serra e mal conseguia respirar.
- Ôôôô “seu” doutô fant...fantasma eu juro
que não... peguei ne-nenhu-ma pedrica... eu ju-juro pela alma da min-minha
mãezinha, que-que Deus a tenha... - Balbuciou Tião caindo de joelhos diante do
fantasma do escravo. Bastou um gesto do coisa-ruim,
para que os dois escravos que o acompanhava se aproximassem do cabra e
retirasse de suas mãos o candeeiro e os diamantes.
_ É
mio vosmicê imbora antes que eu me aperreie.
- Disse o escravo a Tião que não esperou ele falar de novo e num minuto se escafedeu feito fumaça. O escravo olhou demoradamente
para o candeeiro que o Tião lhe entregou como se certificasse de que era o
original. Sorriu assustadoramente satisfeito e se virou. Assim que os fantasmas
pegaram seu rumo, o vento ficou ainda mais forte, apagando o candeeiro em suas
mãos, e num segundo desapareceram na escuridão da noite com seus pertences,
indo de volta para o cruzeiro da serra, onde a fraca luz amarelada se acendeu
novamente.
Assim que as lâmpadas dos postes voltaram a
se acender, não havia mais ninguém nas ruas, exceto a turma do boteco do Manuel,
que permaneciam plantados feito estátuas sobre a calçada. O resto não deixou
nem os rastros, exceto claro, alguns sapatos sem os donos que não se sabe como,
foram deixados para trás.
Remundão, Zezito, Chicão, Sandoval e Manuel
entraram no boteco em silencio e foram logo tomando umas boas talagadas de
pinga para saírem do transe do assombração.
- Alguém pode me
dizer que diacho era aquilo? - Perguntou Manuel ainda assustado.
- Fala nada não Manuel e bota mais cachaça
nesse copo. - Pediu Remundão.
- Cês viru
que coisa feia, mais danada dos inferno?
- Eu num vi nadica de nada, tava tudo
escuro.
- Que diacho de ventania dos inferno foi
aquela?
- Foi só começar aquela ventania doida e
todo mundo se escafedeu de medo. Acho melhor
a gente passar a noite
aqui e só ir embora de manhã, né?
- Sugeriu Sandoval encolhido no canto da mesa.
- Pelo menos ainda ficamos com o dinheiro
das apostas, né Manuel? - Lembrou Zezito.
- S’impolga não Zé. Isso é coisa de maldição
e eu num quero nadica disso.
- Deixa de ser bobo, Remundão. O Zé tem
razão, nós apostamos no Tião e ele cumpriu o desafio, então o dinheiro é nosso,
uai.
- S’impolga não Manuel. - Insistiu Remundão vendo
o amigo caminhar até atrás do balcão e retirar a caixa com o dinheiro das
apostas. De repente, uma nova ventania começou a sacudir tudo, batendo portas e
janelas e as luzes do boteco começaram a piscar até se apagarem de vez,
deixando tudo escuro.
- Que disgraceira de coisa esquisita foi
essa, meu Jesus Cristin? - Perguntou Manuel colocando a caixa sobre a mesa.
- Isso é coisa do Isidoro. - Disse Chicão
quase se borrando de tanto medo, enquanto todos corriam para fechar as janelas
e as portas que batiam sem parar.
- Eu disse que isso era coisa amaldiçoada...
- É mió a gente acender umas lamparina pra
crariá, num é mesm? - Sugeriu Zezito acendendo uma binga que tirou do bolso da
calça e, acompanhado por Remundão, logo encontraram a lamparina sobre o balcão.
Assim que voltaram para a mesa, Sandoval
botou as duas mãos sobre a cabeça assombrado e disse: - Cadê a caixa com
o dinheiro das apostas que tava aqui?
- Gaguejou incrédulo olhando um monte de cinzas onde antes estava a caixa.
- Créindeuspade! A maldição do Isidoro
queimou o dinheiro e agora vai queimar nós tudin, tudin! - Exclamou Chicão apavorado.
- É mió a gente picá a mula. - Falou Zezito saindo
de fininho e, um a um, foi todo mundo picando
a mula dali. Escafederam-se cada um pro seu canto sem olhar para trás.
Manuel, coitado, só voltou no boteco dois
dias depois e nunca mais tocou no assunto do Isidoro. Ainda assim, há quem
acredita que o coisa-ruim, assim que
chegou ao cruzeiro, deu falta dos diamantes verdadeiros que ficaram no bolso do
Tião e voltou para buscá-los, mas o infeliz não encontrou nem alma penada
nas ruelas. Todo mundo havia se escafedido de medo e se trancado em casa, só
saindo à rua de novo quando era dia claro.
Nas noites frias em que o vento assopra pelo
lugarejo, os mais acabrunhados dizem que é o assombração do escravo Isidoro perambulando
ali pelos becos, em meio às sombras, a procura do tesouro roubado. Verdade ou
não, o certo é que depois daquele acontecimento ninguém mais queria falar no desafio
do Tião “boca-de-fogo” e o escravo Isidoro. O prefeito que sempre negou ter qualquer
tramoia com Tião para atrair turistas para o distrito acabou desistindo de se
candidatar a deputado, alegando razões pessoais. Tião por sua vez, escafedeu por alguns dias daquelas
bandas e quando reapareceu estava fraco
das ideia e não falava coisa com coisa. O pobre coitado perambulava pelos
becos de Curralin sem rumo e ninguém sabe o que aconteceu com os diamantes do
escravo que ficaram com ele no dia da ventania. O certo é que as pedrinhas do
Isidoro desapareceram feito fumaça. Urucubaca ou não, ninguém parecia querer se
lembrar da noite em que dona Zefinha estatelou desmaiada duas vezes no mesmo
lugar por conta do escravo Isidoro. A prosa logo muda de rumo no boteco do
Manuel e ninguém mais fala do dito cujo que assombrou até o cabra mais porreta
de macho que já aparecera por aquelas bandas. Paulinho violeiro? Vixi Maria! O
coitado escafedeu-se beco abaixo que
nem um curisco e até hoje tá
procurando a viola. Dizem que o caboclo pegou um tique nervoso no dedo que num
para de tremer. Por um lado, é bom que agora o cabra tá tocando que é uma
maravilha.
Enfim, é nesse mundão de meu Deus, onde as
pedras se ajuntam na serra e as águas se escorrem entre elas é que a vida se
torna tão infinita quanto suas histórias, contadas de boca em boca, por cabras
valentes e cheios de prosa, que mesmo nas horas que se arregam, não se fazem de rogado e dão-se por vencido. E não poderia
ser diferente em Curralin, afinal, bastava um dedo de prosa no boteco do
Manuel, para que Remundão, Zezito, Erildo, Rosa, Chicão, Erivaldo, Paulinho
violeiro ou Sandoval apoquentassem as ideia
de mais um caboclo distraído que perambulasse por aquelas bandas, começando
assim mais uma história maluca e assombrosa, dessas de botá medo até mesmo no cabra mais valente que ande por sobre essas
terras...
E eu aqui... só assuntano.
Fim