domingo, 5 de agosto de 2018

Oitava e última parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro"



  Capítulo – 08
   De frente com o “dito cujo”

   Exatamente a 01h00min da manhã, o sino da capela badalou três vezes e assim que ouviu, “boca-de-fogo” passou a mão nas tralhas e ganhou a praça do chafariz. Logo o povo começou a aplaudir, acompanhando o cabra pelas ruelas estreitas até o boteco do Manuel. Tião caminhava sorridente e cheio de pompa, estendendo o lampião velho e o saco de “diamantes” sobre a cabeça para provar sua valentia.
   - O Tião tá chegando! O Tião tá chegando na pracinha do chafariz! - Gritou alguém entrando no boteco do Manuel em disparada, enquanto todos se levantavam e corriam pra porta só para ver o cabra.
   - Esse Tião é porreta por demais mesmo, hein!  Bem que ele disse que num tinha medo do  escravo   Isidoro. - Disse Manuel orgulhoso pelo feito do amigo.
   - S’impolga não Manoel, esse cabra tem muita história pra contar.
   - Ô Remundão, deixa de prosa frouxa, homi. O cabra foi num pé e voltou no outro e tu ainda discunfia de sua macheza, sô?
   - Remundão tem razão. - Indagou Sandoval coçando o queixo. - Subir a serra até o cruzeiro do Isidoro naquela trilha pedregosa e ainda no escuro leva muito tempo.
   - Quem sabe o Isidoro não deu uma carreira nele morro abaixo e o cabra chegou aqui mais ligeiro? 
   - Sei não, viu. Ainda vai aparecer muito caroço nesse angu.
   Assim que o Tião passou pelo boteco do Manuel em direção ao carro de som, foi ovacionado com uma salva de palmas e muita gritaria. Paulinho violeiro sapecou a mão no microfone e pediu que o cabra subisse ao palco, porém, um silêncio sepulcral tomou conta do lugar e acreditem ou não, lá estava ele, o assombração do escravo Isidoro em pessoa, ou não. A figura era tão feia, mas tão feia que os que não desembestaram rua afora de medo, ficaram ali plantados que nem estátuas, sem conseguir arredar pé do lugar. Tião olhou de butuca o que tava acontecendo e quando pregou os olhos no fantasma, suas pernas bambearam e uma baita tremedeira tomou conta do cabra, que já não tinha nem mais força pra correr.
   - Meu Deus do céu, minha Nossa Senhora, meu Jesus Cristo, me ajuda!!! - Resmungou Tião sem tirar o olho do coisa ruim.
   Dona Zefinha assim que viu o fantasma desmaiou na porta do boteco do Manuel e lá ficou, já que ninguém tinha coragem pra se mexer.
   - Tião!! Seu mentiroso!! - Gritou Isidoro. - Tu vai se arrepender de ter me desafiado, cabra da peste! Quero tudinho os meus diamantes agora.
   Quando ouviu o seu nome, “boca-de-fogo” quase se borrou nas calças.
   - Cumé que esse infeliz sabe o meu nome, meu Jesus cristin? - Perguntou Tião olhando para os amigos na porta do boteco.
   Sandoval, neguin esperto por demais, ficou incucado com aquilo e disse:
   - Esse fantasma tá meio mentiroso, sô. Onde já se viu o assombração do escravo Isidoro usar chapéu e capa? Tá parecendo o batman?
   - E num é que o minino Sandoval tem  mesmo  razão? - Concordou Manuel da porta do boteco.
   Bastou uma ponta de desconfiança pra todo mundo criar coragem e partir pra cima do assombração do Isidoro. O infeliz num teve tempo nem de piscar o olho antes de quase ser linchado pelo povo. Pra sua sorte, Remundão tomou partido e protegeu o infeliz que por sua vez, acusava o prefeito de mentiroso e de estar enganando o povo de Curralin.
   - Quem é esse cabra? - Perguntou Manuel se aproximando do dito escravo. O caboclo tava todo pintado de tinta preta e as roupas molambentas parecendo um mendigo.
   - Mas que diacho de cabra esquisito é esse?
   - S’impolga não, que a gente vai descobrir nesse minuto.
   - Por favor, não me machuquem! Eu tô falando a verdade. A culpa é do prefeito. - Acusou.
   - Quer dizer que o prefeito mandou você vir até aqui fingindo ser o escravo Isidoro? - Perguntou Remundão.
   - Eu não, o Tião.
   - O Tião mandou?!?
   - Não, o prefeito.
   - Eu já num tô intendeno é mais nadica de nada. Uma hora é o Tião, na outra é o prefeito. - Disse Zé das Candeia coçando a cabeça.
   - Vixi Manuel, num foi tu quem vendeu essa cachaça pra esse cabra não, foi?
   - Larga de sê Bobo, sô. - Defendeu o dono do boteco aperreado. - Eu nunca vi esse cabra da peste na minha frente, ôxente, e pro seu governo, a cachaça que o Zé traz é a melhor cachaça dessas redondeza.
   - É mió deixá esse cabra í s’imbora de uma vez, antes que ele apoquente ainda mais as ideia.
   - Cês vão deixá o coisa feia ir embora assim depois de me chamar de mentiroso?
   - Calma Tião, o infeliz tá desmiolado das ideia e num sabe nem o que tá falando. - Interveio Manuel.
   - O prefeito e esse daí que se diz cabra-macho tão enganando todo mundo. É tudo armação pra enganar vocês. - Gritou o falso fantasma.
   - Mas num foi tu que fingiu   ser   o   escravo   Isidoro? - Observou Chicão. 
   - Já que ninguém acredita em mim, então pode ficar com isso também, que  eu  vou  é  embora  desse  lugar maluco. - Disse o cabra entregando a sacolinha com os diamantes para o Tião e tomando rumo.
   - Mais diamante? - Estranhou ele. - Quanto mais, mió. - Completou Tião guardando a sacolinha no bolso sem entender nada e assim que se virou em direção ao palco onde esperava sua glória, todas as luzes do lugarejo se apagaram, virando uma penumbra só, enquanto uma ventania dos diabo começava a assoprar misteriosamente, fazendo o povo se proteger pelos cantos da praça.
   - Mas que diacho, sô. Será que ninguém vai me deixar receber minhas honras? – Praguejou Tião contrariado.
   Na mesma hora, surgiu um clarão repentino na entrada da praça e todos se voltaram para ver o que estava acontecendo. Lentamente a luz ia se aproximando e todos corriam desenfreados pelos becos com medo daquela coisa escabrosa.
   - Mas que disgrameira de coisa esquisita é essa agora? _ Perguntou Chicão tentando descobrir o que era aquilo no meio daquela estranha luz amarelada. O barulho de correntes sendo arrastadas pelas pedras que cobriam as ruas ficava cada vez mais alto e as sombras que se formavam nas fachadas das casas, ainda mais assustadoras. Bem que o povo fala, desgraceira pouca é bobagem e àquela altura, ninguém já nem respirava mais. Tião, coitado, o cabra parecia que já tinha morrido e não percebeu. Os olhos plantados naquela coisa do capeta que vinha se aproximando em sua direção, estavam tão esbugalhados que pareciam duas jabuticabas graúdas a ponto de cair do rosto pálido que nem cera. O infeliz já tinha molhado as calças e só esperava o pior, o que não demorou acontecer quando a criatura infernal chamou pelo seu nome. O caboclo se borrou todo.  Dona Zefinha que mal acordara do primeiro desmaio, se esborrachou de novo no mesmo lugar. Coitada, mais uma queda daquela e a dita empacotava de vez. Manuel parecia uma estátua com meio palmo de língua pra fora da boca e só num dispiguelou de vez ladeira abaixo porque não conseguia nem mesmo se mexer. Zezito não parava de resmungar o que nem ele mesmo sabia o que estava dizendo e fazer o que parecia ser o sinal da cruz com as duas mãos, enquanto o coisa-ruim se aproximava arrastando suas correntes. Assim que distinguiram o que era aquela figura dos infernos, quem não descambou pelos becos, certamente é porque já estava todo borrado. Um negão de dois metros de altura, 120 quilos, as roupas surradas das minas e sujas de sangue pelas chibatadas, correntes nos pés descalços e um candeeiro completamente enferrujado, porém aceso, acompanhado por dois escravos de menor porte que lhe iluminavam o caminho, parou a alguns metros do Tião “boca-de-fogo” e olhou-o por alguns segundos. Segundos? Aquilo parecia umas cem encarnações na vida do infeliz diante do filho do demônio. Quando o coisa-ruim do fantasma do Isidoro abriu a boca para falar o nome do Tião, o som parecia vir das profundezas do inferno.
   - Vosmicê buliu com minhas pedrinha e meu candieiro... e  eu  vim  aqui  pra  mode  pegá   eles   de   volta! - Disse.
   Tião coitado, tava mais petrificado do que as rochas da serra e mal conseguia respirar.
   - Ôôôô “seu” doutô fant...fantasma eu juro que não... peguei ne-nenhu-ma pedrica... eu ju-juro pela alma da min-minha mãezinha, que-que Deus a tenha... - Balbuciou Tião caindo de joelhos diante do fantasma do escravo. Bastou um gesto do coisa-ruim, para que os dois escravos que o acompanhava se aproximassem do cabra e retirasse de suas mãos o candeeiro e os diamantes.
   _ É mio vosmicê  imbora  antes  que  eu  me   aperreie. - Disse o escravo a Tião que não esperou ele falar de novo e num minuto se escafedeu feito fumaça. O escravo olhou demoradamente para o candeeiro que o Tião lhe entregou como se certificasse de que era o original. Sorriu assustadoramente satisfeito e se virou. Assim que os fantasmas pegaram seu rumo, o vento ficou ainda mais forte, apagando o candeeiro em suas mãos, e num segundo desapareceram na escuridão da noite com seus pertences, indo de volta para o cruzeiro da serra, onde a fraca luz amarelada se acendeu novamente.
   Assim que as lâmpadas dos postes voltaram a se acender, não havia mais ninguém nas ruas, exceto a turma do boteco do Manuel, que permaneciam plantados feito estátuas sobre a calçada. O resto não deixou nem os rastros, exceto claro, alguns sapatos sem os donos que não se sabe como, foram deixados para trás.
   Remundão, Zezito, Chicão, Sandoval e Manuel entraram no boteco em silencio e foram logo tomando umas boas talagadas de pinga para saírem do transe do assombração.
   - Alguém  pode  me   dizer   que   diacho   era   aquilo? - Perguntou Manuel ainda assustado.
   - Fala nada não Manuel e bota mais cachaça nesse copo. - Pediu Remundão.
   - Cês viru que coisa feia, mais danada dos inferno?
   - Eu num vi nadica de nada, tava tudo escuro.
   - Que diacho de ventania dos inferno foi aquela?
   - Foi só começar aquela ventania doida e todo mundo se escafedeu de medo.  Acho melhor a gente  passar  a  noite  aqui  e     ir  embora  de  manhã,  né? - Sugeriu Sandoval encolhido no canto da mesa.
   - Pelo menos ainda ficamos com o dinheiro das apostas, né Manuel? - Lembrou Zezito.
   - S’impolga não Zé. Isso é coisa de maldição e eu num quero nadica disso.
   - Deixa de ser bobo, Remundão. O Zé tem razão, nós apostamos no Tião e ele cumpriu o desafio, então o dinheiro é nosso, uai.
   - S’impolga não Manuel. - Insistiu Remundão vendo o amigo caminhar até atrás do balcão e retirar a caixa com o dinheiro das apostas. De repente, uma nova ventania começou a sacudir tudo, batendo portas e janelas e as luzes do boteco começaram a piscar até se apagarem de vez, deixando tudo escuro.
   - Que disgraceira de coisa esquisita foi essa, meu Jesus Cristin? - Perguntou Manuel colocando a caixa sobre a mesa.
   - Isso é coisa do Isidoro. - Disse Chicão quase se borrando de tanto medo, enquanto todos corriam para fechar as janelas e as portas que batiam sem parar.
   - Eu disse que isso era coisa amaldiçoada...
   - É mió a gente acender umas lamparina pra crariá, num é mesm? - Sugeriu Zezito acendendo uma binga que tirou do bolso da calça e, acompanhado por Remundão, logo encontraram a lamparina sobre o balcão.
   Assim que voltaram para a mesa, Sandoval botou as duas mãos sobre a cabeça assombrado e disse: - Cadê a  caixa  com  o  dinheiro  das  apostas  que  tava   aqui? - Gaguejou incrédulo olhando um monte de cinzas onde antes estava a caixa.           
   - Créindeuspade! A maldição do Isidoro queimou o dinheiro e agora vai queimar nós tudin, tudin! - Exclamou Chicão apavorado.
   - É mió a gente picá a mula. - Falou Zezito saindo de fininho e, um a um, foi todo mundo picando a mula dali. Escafederam-se cada um pro seu canto sem olhar para trás.
   Manuel, coitado, só voltou no boteco dois dias depois e nunca mais tocou no assunto do Isidoro. Ainda assim, há quem acredita que o coisa-ruim, assim que chegou ao cruzeiro, deu falta dos diamantes verdadeiros que ficaram no bolso do Tião e  voltou para buscá-los,  mas o infeliz não encontrou nem alma penada nas ruelas. Todo mundo havia se escafedido de medo e se trancado em casa, só saindo à rua de novo quando era dia claro.
   Nas noites frias em que o vento assopra pelo lugarejo, os mais acabrunhados dizem que é o assombração do escravo Isidoro perambulando ali pelos becos, em meio às sombras, a procura do tesouro roubado. Verdade ou não, o certo é que depois daquele acontecimento ninguém mais queria falar no desafio do Tião “boca-de-fogo” e o escravo Isidoro. O prefeito que sempre negou ter qualquer tramoia com Tião para atrair turistas para o distrito acabou desistindo de se candidatar a deputado, alegando razões pessoais. Tião por sua vez, escafedeu por alguns dias daquelas bandas e quando reapareceu estava fraco das ideia e não falava coisa com coisa. O pobre coitado perambulava pelos becos de Curralin sem rumo e ninguém sabe o que aconteceu com os diamantes do escravo que ficaram com ele no dia da ventania. O certo é que as pedrinhas do Isidoro desapareceram feito fumaça. Urucubaca ou não, ninguém parecia querer se lembrar da noite em que dona Zefinha estatelou desmaiada duas vezes no mesmo lugar por conta do escravo Isidoro. A prosa logo muda de rumo no boteco do Manuel e ninguém mais fala do dito cujo que assombrou até o cabra mais porreta de macho que já aparecera por aquelas bandas. Paulinho violeiro? Vixi Maria! O coitado escafedeu-se beco abaixo que nem um curisco e até hoje tá procurando a viola. Dizem que o caboclo pegou um tique nervoso no dedo que num para de tremer. Por um lado, é bom que agora o cabra tá tocando que é uma maravilha.
   Enfim, é nesse mundão de meu Deus, onde as pedras se ajuntam na serra e as águas se escorrem entre elas é que a vida se torna tão infinita quanto suas histórias, contadas de boca em boca, por cabras valentes e cheios de prosa, que mesmo nas horas que se arregam, não se fazem de rogado e dão-se por vencido. E não poderia ser diferente em Curralin, afinal, bastava um dedo de prosa no boteco do Manuel, para que Remundão, Zezito, Erildo, Rosa, Chicão, Erivaldo, Paulinho violeiro ou Sandoval apoquentassem as ideia de mais um caboclo distraído que perambulasse por aquelas bandas, começando assim mais uma história maluca e assombrosa, dessas de botá medo até mesmo no cabra mais valente que ande por sobre essas terras...
   E eu aqui... só assuntano.                 

                               
                                                                   Fim    

https://www.clubedeautores.com.br/book/252533--APARICOES_E_MINEIRICES_DO_ISIDORO?topic=literaturanacional#.W2e4LVVKi1s

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Sétima parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro".


                                              Capítulo - 07
                                              Êta cabra valente
  
   Curralin, palco de uma festança arretada, continuava recebendo cada vez mais gente que, curiosa com a notícia do desafio que se espalhava que nem fogo no capim, não queria perder a aposta do Tião “boca-de-fogo” desafiando o fantasma do escravo Isidoro, nem que a vaca tussa. Enquanto isso, Paulinho violeiro embalava a noite com sua cantoria, e que de acordo com os mais encabulados, era acompanhado pelo espírito do irmão, e olha que alguns juravam de pé-junto que estavam vendo ele no palco. Pelo sim, pelo não, ninguém se atrevia a desmentir. O que importava na verdade era a proximidade da hora, anunciada pelo violeiro de meia em meia hora, em que Tião subiria a serra em busca dos diamantes do Isidoro.
   No boteco do Manuel, a turma do Remundão estava mais animada do que nunca. Todos queriam ver a macheza do cabra e não perderiam aquele acontecimento por nada desse mundo.
   - Cês num acham que o Tião tá tranquilo demais da conta pra quem vai encarar o assombração do Isidoro não? - Observou Zé das Candeia.
   - Uai, sô, e num é que é mesm?
   - S’impolga não, pessoal. Ainda tá cedo por demais e ele tá bebendo tanto que vai despencar antes mesmo da hora de arribar a serra e pegar o boi pelo chifre.
   - Já passa das dez hora e daqui a pouquim ele tem que subi a serra   de   carqué   jeito,   quereno   ou   não. - Lembrou Zezito.
   - Hei Tião, tá preparado pra enfrentar o Isidoro?
   - Calma, pessoal. O cabra aqui é muito dos macho pra ter medo de um assombração mixo desse, sô. Inda mais que tá por demais de cedo e as aposta tão só aumentando, num é Manuel?
   - Oxi, já num tá nem cabendo mais dinheiro na caixa, uai. - Respondeu o dono do boteco rindo até as orelhas.
   - Intão trata de arruma outra caixa e escondê logo essa aí, né uai? 
   - Bem pensado né Chicão. Vou ponhá ela debaixo do balcão pra ficar bem escondidinha aqui e aí quando o Tião chegar daquela serra, vamo vê os nome dos apostador pra saber quem vai levar a bolada, né?
   Tião tava muito confiante no plano arquitetado pelo prefeito e continuava bebendo que nem que doido e assim que deu a hora, Paulinho violeiro parou a música e pediu uma salva de palmas pra ele. O coitado do cabra foi pego de surpresa e quase teve um trem no coração. Por um instante pensou que tinha mesmo que subir aquela serra e desafiar o espírito do escravo Isidoro, coisa que no fundo ele tinha certeza que se borraria todo se tivesse que fazer. Sabia que não teria coragem de subir lá naquele fim de mundo, onde o gato perdeu as botas, de madrugada, só para mostrar macheza. Mas ainda bem que o prefeito, sem saber, acabou dando uma mãozinha danada de porreta pra ele.
   Tião pegou o último copo de pinga, jogou um pouco para o santo e, aliviado, bebeu de uma golada só. Na verdade, se ele fosse jogar um pouco da pinga para cada santo que agradeceu naquela hora, ia precisar de mais de litro. Todo peitudo, saiu à porta do boteco do Manuel e abanou a mão para o povo que gritava seu nome. Nunca o pobre do cabra inchou tanto o peito como àquela hora. Sentia-se como um político vitorioso cumprimentando o povo após as eleições.
   O cabra, já meio tonto, passou pelo meio da multidão e foi direto para o carro de som, onde o prefeito já o esperava todo cheio de nhéim, nhéim, nhéim, pois sabia que em algumas horas, além do dinheiro arrecadado com as taxas, licenças e pedágios cobrados até então, ganharia o apoio dos eleitores na sua corrida para se eleger deputado. Pra ele, tudo aquilo era apenas uma tramoia política.
   - E aqui está o cabra que desafiou o espírito do nosso lendário escravo Isidoro!! Vamos aplaudir esse corajoso rapaz que diz que vai subir a serra até o cruzeiro, trazer o candeeiro e os diamante do infeliz!
   A praça toda se explodiu em gritos e aplausos que fizeram Tião se sentir o dono da cocada preta, e sem se conter, o cabra foi até o palco e puxou o microfone das mãos do prefeito, gritando com voz arrastada:
   - É isso mesmo seu prefeito! Vou mostrar pra todo mundo que o cabra aqui é muito macho mesmo. E num vou trazer só aquele lampiãozin véio não, vou trazer os diamante também e se aquele fantasma num gostar eu trago até ele dentro dum saco.
   Pobre Tião. Não sabia em que mato tava se metendo e isso ainda ia dar muito pano pra manga. Podia acabar com os burros n’água. O infeliz tava confiante por demais na chicana armada pelo prefeito e isso tinha tudo pra não dar certo, afinal, estavam em Curralin, onde até o mais improvável podia acontecer. Beijou a mão do prefeito e desceu do palco cambaleante e se não fosse o povo, tinha tomado rumo errado ao caminho que ia dar no cruzeiro.
   - Antes preciso dar uma passadinha na igreja. - Disse Tião.
   - Mas a igreja tá fechada a essa hora, homi de Deus.
   - E eu num sei? Mas o prefeito mandou, então eu passo.
   - O prefeito?                              
   - Psssit... conta pra ninguém não. - Falou ele cada vez mais bêbado. – Boca-de-siri.
   - Tá bem. Se o prefeito mandou.
   E Tião desceu meio que arrastado pela ruela que dava na praça da capela, sob o incentivo da multidão. A danada da cachaça começava a subir e o cabra já quase não se aguentava de pé.
   - Vaaiiiiii, Tião!! - Gritou dona Josefina toda ouriçada da janela de casa.
   - Hei Zefinha, meu amor. Vou trazer um diamante bem grande pra você, viu?
   Da porta do boteco do Manoel, o grupo de amigos olhava “boca-de-fogo” cambalear beco abaixo, cumprimentando todo mundo como se os conhecessem.
   - Nunca vi esse cabra tão bêbado assim. - Disse Manuel.
   - É mió a gente ficar de ôio nele, antes que ele se estrepe num buraco desses aí.
   - S’impolga não, pessoal. “Esse  caldo  tem  pimenta”.  - Disse Remundão coçando o queixo.
   - O sinhô acha que ele tá é de fingimento, seu Raimundo? - Perguntou Sandoval.
   - Ô Remundão, o sinhô também disconfia de tudo, hein?
   - Manoel, Manoel...  quantas cachaça o senhor serviu pro Tião hoje?
   - Um  tanto  pra    de  metro,  sem  base,   eu   acho... - Respondeu o dono do boteco coçando a cabeça.
   - E quantas vezes o Tião ficou bêbado?
   - Nunquinha.
   - O seu Remundo tem razão. - Disse Chicão. - Já vi o Tião beber pra mais de dúzia e ainda ficar sãozin da silva.
   - Nesse mato tem coelho.
   - Mió mesmo é a gente fica de espreita espiando esse cabra.
   - Vou pedir dona Ambrosina pra ficar aqui tomando conta e nós vamo pegar esse caboclo com a boca na botija, ah se vamo.
   Assim que chegaram à pracinha, Tião já havia desaparecido no meio do povo que nem fumaça no vento.
   - Ô xente, adonde é que foi pará  esse  cabra da   peste? - Perguntou Manuel coçando a cabeça.
   - S’impolga não, Manuel, o danado deve de tá dentro da igreja.
   - Ô Remundão, tu não vê que tá tudo fechado, homem de Deus?
   - E num é que tá mesmo. Então o cabra se escafedeu de vez...
   - Eu disse, esse Tião é mesmo um cabra muito porreta. É mió a gente voltar pro bar, vai que esse cabra já tá subindo a serra pra confrontar com o Isidoro e nesse minuto tá de volta.
   - Tem razão. - Concordou Remundão cada vez mais desconfiado daquela historia toda.
   Assim que chegou na pracinha do chafariz, Tião se esgueirou sorrateiramente pelos cantos, contornando a capela até os fundos, onde se escondeu à sombra da noite, até a chegada do assistente do prefeito, como combinado. Não tardou muito para que o homem surgisse caminhando de ponta dos pés abraçado a um pequeno pacote.
    - Tome. Aqui estão o lampião velho e  os   diamantes. - Disse ele assim que viu o Tião. - Quando o sino da capela bater, você volta pra porta do bar do Manoel e faz tudo do jeitinho que a gente combinou, entendeu?
   - Se preocupa não que eu vô convencer até o próprio fantasma do Isidoro de que ele perdeu essa aposta.
   - Rapaz, é melhor não brincar com uma  coisa  dessas. - Repreendeu o assistente do prefeito sentindo um calafrio percorrer-lhe a espinha.
   - Fica tranquilo, ninguém vai desconfiar de nada.
   E assim a estória do Tião começava a virar lenda em Curralin. Há quem diga que tudo começou diferente, mas dito pelo não dito, o certo era que a fama do Tião rompeu os limites do pequeno município e se tornou indiscutível para quem morava ou tinha parentelas nas redondezas.
                          

                                                  Continua na próxima semana...

domingo, 22 de julho de 2018

Sexta parte do romance "Aparições e mineirices do Isidoro"


   
   Capítulo – 06
   A tramóia do prefeito
                         
    Antonio José de Oliveira Magalhães Abreu e Silva, este era o nome do prefeito. “Mas pode me chamar de Zequinha”, dizia ele com um largo sorriso no rosto. Com um nome desses, o infeliz tinha mesmo que ser político ou então o cabra era parente de Dom Pedro e ninguém sabia. Coisas de cidade do interior. Cheio de “Uai’s” o danado conseguia embromar todo mundo na conversa e ainda se safava bem das tretas que arrumava como prefeito.
   Naquele dia, assim que o delegado deixou o boteco do Manuel, Curralin recebeu a visita inesperada de um trio elétrico que passeou pelas ruelas com um som ensurdecedor até estacionar na pracinha próxima ao boteco do Manuel. Ninguém sabia o que estava acontecendo, mas todos pareciam aprovar a novidade, e até quem não era da cidade entrou na festa feita por aquela geringonça barulhenta.
   - Vixi Maria, mas que diabos está acontecendo aqui?!? - Perguntou Manuel se aproximando dos amigos que já haviam se agrupado num canto.
   - Como pode ver, coisa do doutô prefeito, uai. Olha lá as faixas de agradecimento.
    - E porque diacho o homi tá nos agradeceno?
   - S’impolga não, Zézito. Alguma coisa o prefeito tá querendo. - Disse Remundão desconfiado. - Primeiro manda prender o Tião, depois vem fazer festa? Comigo não, violão.
   - Ô seu Remundão, o sinhô é muito discunfiado tomém, né?
   - Chicão, Chicão, anota aí o que eu tô te dizendo: esse tal prefeito tá aprontando mais uma das suas.
   - Pelo menos tem festa na cidade, né?
   - Tão falano por aí que inté o tal de Paulinho violeiro veio da capital só prá tocá aqui prá nóis.
   - O cabra é muito porreta mesmo com aquela viola, toca inté de ôio fechado.
   - Sabia que toda vez que esse caboclo toca, o esprito do irmão dele, um tal de Régis aparece todo prosa e fica ali do ladinho dele acompanhando?
   - Cês tão é tudo doido, sô. - Disse Zezito fazendo careta. - Só pru quê o cabra é pra lá de porreta num tem base o esprito do irmão tocá com ele, né?
   - Óia! Óia! o carro do doutô prefeito! - Gritou Chicão entusiasmado.
   - O que é que ele veio fazer aqui? Tem certeza que é ele mesmo?
   - S’impolga não, Chicão. Garanto que ele não veio trazer nada além daquela pança gorda.
   - Iiichhh danô! Ele tá vindo diretin pra cá.
   O prefeito desceu do carro e caminhou direto e sorridente até a porta do bar do Manuel, sacolejando sua barriga avantajada.
   - Meus queridos eleitores, que prazer poder estar dividindo com vocês a alegria dessa festa maravilhosa neste lindo   distrito   pertencente   ao   meu   município. - Disse ele orgulhoso.
   - Quanto tempo o sinhô não vem por essas banda, seu prefeito?
   - É muito trabalho na prefeitura para melhorar a vida da comunidade, né uai?
   - E o que  traz  o  sinhô  por  essas  banda  de cá,   oh  xente?
   - Vim conhecer este rapaz tão corajoso de quem se tem falado tanto, uai. - Disse o prefeito olhando ao redor.
   - Mas... me isprica uma coisa, doutô prefeito, premero o sinhô manda o delegado prender o homi e dispois o sinhô quer conhecê ele? - Perguntou Zezito coçando a cabeça.
   - S’implga não, Zé. Deve ter tido um mal-entendido aí, não é seu prefeito?
   - Mas é claro, meus amigos. Foi... foi isso mesmo, um mal-entendido. - Gaguejou o prefeito enquanto ajeitava as calças sobre a volumosa barriga. - Só pedi ao delegado para levá-lo até a prefeitura para que eu pudesse conhecê-lo pessoalmente.
   - O sinhô não ia prender o rapaz?
   - Nananinanão! Nada disso! Afinal de contas é por causa dele que a cidade tá cheia assim, não é mesmo?
   - Mas a culpa num é dele não...
   - Eu sei, eu sei. Foi apenas uma brincadeira que deu certo e podem apostar que estou muito feliz   por   isso. - Respondeu o prefeito olhando em volta. - Onde é que tá esse rapaz que ainda não vi?
   - Tá aqui não, doutô.
   - Que pena. - Lamentou. - Quando ele aparecer, diga que gostaria muito de falar com ele na prefeitura, está bem?
   - Sim sinhô, seu prefeito. Podexá que nos fala pra ele.
   Depois de dar algumas voltas entre a multidão, fazer um pequeno discurso para seus eleitores, o prefeito entrou no carro e desapareceu de Curralin.
   - Mas que diacho o doutô prefeito queria aqui, que eu num intendí nadica de nada, hein? - Disse Manuel coçando o queixo.
   - S’impolga não, Manuel. No fundo desse poço tem água de ferro.
   - Seu Remundão, pruquê o sinhô fala essas coisa isquisita assim? - Perguntou Chicão sem entender.
   - Nada não, Chicão. Nada não...
   - Quer dizer intão que ele autorizou o “Tião” a subir a serra à meia noite...
   - Isquece isso homi de Deus, vamo aporveitá a festa. O Doutô prefeito disse que vai ter xôu de música com o Paulinho violeiro e ôtras coisa boa, sô. - Disse Chicão todo empolgado.
   - Festa? Mas... quem organizou tudo isso assim tão depressa? - Perguntou Manuel.
   - E quem mais poderia ser?  - Disse Sandoval chegando com seu jeito moleque e  um  copo   de pinga  na  mão. – Erivaldo, é claro.
   - Quem diacho é esse “Erivaldo é claro”? - Perguntou Zezito.
   - Não é “Erivaldo é claro”. É só Erivaldo. - Respondeu Sandoval.
   - O fí do gerardão militar que mora na ladeira do Burgaial?
   - É ele mesmo. Irmão da Rosa professora...
   - Aquela fessôra que já leu tudo cuonto é livro das bisbi, brisbi, bliblioteca dessa cidade?
   - Ela mesma. Irmã do Erildo, da Rita, Marialice...                                  
   - Aquês minino é bão por demais, sô.
   - Dizem inté que esse tal de Erildo viaja tanto que cunhece inté ôtros praneta.
   - S’impolga não, Chicão. Os meninos são filho do Geraldo e são muito prendado mesmo.
   - Nós vamos ficar aqui de prosa ou vamos entrar no boteco do Manuel pra comemorar tomando aquela pinguinha da boa que tá nos esperando? - Convidou Sandoval e os cinco mais que depressa saíram da rua.
   Sandoval era um cabra pra lá de porreta. Êta neguin danado. Num tinha quem não gostava dele por aquelas bandas de Curralin. Era o tio San desse Brasilzão véio sem porteira e todo mundo que apeava naquelas bandas, mais cedo ou mais tarde, se intretia com as prosa do cabra nas ruelas estreitas por onde a Sinhá Chica mandava e desmandava nos caboclo véio de outrora. Êita caboclinho bão, sô. Jeitinho de baiano, gingado de carioca, mas nasceu mesmo foi nessas banda onde a serra aconchega o sonho e floreia os olhos de sempre-vivas.  Dizem até que um cabra daquele lado virou presidente e num construiu só uma igrejinha que nem a Chica não. O cabra era tão atrevido que foi logo construindo uma cidade inteirinha noutras banda.
   Mas a vida é assim mesmo. Uns vão, outros vem e Curralin não deixa de ser o lugar aconchegante atolado no meio da serra, com suas muitas histórias que se conta desde outros tempos. Do nada surge um boato que vira um causo que passa de um pra outro e depois mais outro e mais outro e quando se assusta já é lenda.
   E com o escravo Isidoro não foi diferente, mas, se era mentira ou verdade ninguém queria saber, o importante é que os cabra do lugar não deixavam por menos e cada um queria tirar uma casquinha de vantagem e aumentar um pouquinho mais daquela história. Se o desafio do Tião “boca-de-fogo” se estendesse por mais tempo, Curralin ia ser um Deus-nos-acuda de tanta gente. Mas Tião era cabra muito macho e esperto por demais e num ia deixar aquela chaleira no fogo por muito tempo não.
   Naquela mesma tarde o doido do cabra bateu com os pés na prefeitura pra acabar de vez com aquela lengalenga de que podia ou não subir a serra pra desafiar o tal do Isidoro. É isso mesmo que o cabra desmiolado fez. Foi lá fala com o prefeito e resolver de vez aquela história. Mas, assim que o assessor do prefeito Zequinha bateu com os óio nele, quase teve um troço. Puxou o cabra pelo braço até um canto e foi logo perguntando:
   - Mas que diacho cê ta fazendo aqui, homi de Deus? Hoje é feriado e a prefeitura tá fechada. Tu num já recebeu sua paga pelo serviço?
   - Sim, senhor, mais é que...
   - Sem mais nem menos. O prefeito num pode te ver aqui de jeito maneira senão...
   - Senão o quê, Zé Bento? - Perguntou o prefeito saindo do gabinete empurrando a enorme pança.
   - É que este é o...
   - Não precisa dizer, meu rapaz. - Disse o prefeito sorridente. - Então este é o cabra pra lá de macho, o famoso Tião “boca-de-fogo”.
   - Nnão... quer dizer sim.
   - Mas é sim ou é não? - Perguntou o prefeito sem entender nada. - Entrem no meu gabinete que tu vai me contar tim-tim por tim-tim essa história descabida.
   Depois de passar a chave na porta, o prefeito sentou-se e foi direto ao assunto.
   - E então?
   - Bem... é que... aconteceu alguns imprevistos naquela contratação do moço da televisão e... bem, na verdade o Tião aqui não é o Tião de lá. - Disse o assessor se mexendo na cadeira, nervoso.
   - Mas isso já é sabido, afinal ele é um ator que mandei contratar para aumentar o turismo na cidade uai.
   - Sim, sim, mas este não é o ator contratado.
   - Não?
   - Sim...
   - É sim ou é não, diacho?
   - Não sinhô. - Disse logo Tião. - Mas eu num fiz nada de errado não. Fiquei com medo e fingi que era parente distante de umas pessoas lá das redondeza só pra ter onde ficar e a coisa desandou.
   - E como sabia que desafiar o fantasma do escravo Isidoro ia trazer tanta gente pra minha humilde cidade? - Perguntou o prefeito.
   - Sabia não senhor. Foi só uma brincadeira com os amigos. - Respondeu Tião ainda temeroso com o prefeito.
   - E onde está o moço da televisão?
   - Eu já dispensei o rapaz, prefeito, já que o improviso do nosso amigo Tião saiu  melhor   que  a   encomenda. - Explicou o assessor com um largo sorriso.
   - Sei não, sei não... isso ainda pode trazer problema. E tu? Pretende mesmo subir a serra e trazer os diamantes do escravo Isidoro?
   - Bão, subir a serra sim, agora trazer os diamantes do escravo é outra história. - Disse Tião ressabiado.
   - E por que você não pegaria os diamantes já que vai mostrar essa macheza indo até lá?  
   - É que na verdade eu nem sei se tem diamante de verdade naquela cruz, uai. Pra mim isso é só história pra boi dormir.
   - Acho que então nós temos que arranjar uns diamantes de mentirinha pra convencer o povo, não é mesmo? - Sussurrou o prefeito piscando um olho para os dois.
   - Mas como? - Quis saber o assessor.
   - Vamos fazer o seguinte: Na hora marcada o nosso amigo Tião finge que vai até o cruzeiro do Isidoro, se esconde atrás da capela e deixa o resto por nossa conta.
   - E os diamantes?
   - Calma que já dou um jeito nisso. - Disse o prefeito indo até o cofre e tirando de lá um pequeno embrulho que derramou sobre a mesa. Os olhos do Tião quase saltaram da órbita.
   - Meu Deus... é diamante de verdade?
   - É claro que não. São apenas cristais lapidados, não valem nada. Assim que você chegar da “serra” é só mostrar pro povo, fazer a festa e então eu chego com o delegado, confisco tudo e eles voltam pra prefeitura, entendeu? Ninguém vai perceber que não é  diamante. - Explicou o prefeito  satisfeito  com  seu  plano. - Você cumpre o seu desafio, a cidade fica famosa e eu, claro, posso me candidatar a deputado.
   - O senhor é mesmo batuta de esperto hein prefeito? - Elogiou o assessor.
   Ah prefeito Zequinha. Quem te viu e quem te vê. Quem te conhece não te compra nem se os diamantes fossem verdadeiros. Mas, fazer o quê? Conversa de político e história de pescador o melhor mesmo é não contradizer e ir saindo de fininho como quem não quer nada. Afinal, já dizia o ditado: quem conta um conto acrescenta um ponto e não queremos delongar e complicar essa prosa ainda mais. Curralin era lugar de gente simples, pacata e feliz, onde o cabra se aconchega no cantinho e como todo bom mineiro fica só observando desconfiado, caladinho enquanto o trem ganha trecho.
   O plano do prefeito tinha tudo para dar certo, porém o que ele tava longe de saber, era que o verdadeiro cara da televisão contratado a princípio, não tinha ficado muito satisfeito com a dispensa do trabalho e resolveu ficar de tocaia ali pelos arredores da prefeitura e assim que viu Tião chegando, foi correndo ficar de butuca sob a janela do gabinete, nos fundos da prefeitura.
   - Quer dizer que esse tal de Tião tá de trêta com o prefeito no meu lugar, hein? Então vou dar uma mãozinha por conta da casa. Esses dois não perdem por esperar. - Murmurou o rapaz.  
   Assim que Tião “boca-de-fogo” saiu da prefeitura, passou na casa dos tais parentes e depois foi correndo para o boteco do Manuel de onde os amigos não arredaram pé o dia todo.
   - E aí rapá, oncêtava? - Perguntou um.
   - Tu escafedeu-se. - Disse outro.
   - Os pulíça te prendeu?
   - S’impolga não, pessoal, chega dessa perguntação e deixa o cabra respirar. - Falou Remundão, e quando Remundão falava os cabra tudo se calava.
   - Ocês é muito preocupado comigo, sô. Tava por aí mesmo.
   - Ahh isso é que  não. - Disse   Zezito   se   adiantando. - Nós fumo im tudo que era canto da cidade e ninguém sabia oncêtava enfiado?!
   - Tá bom, tá bom. Na verdade, eu fui dá uma dura no doutor prefeito. - Soltou Tião observando a reação dos outros.
   - Cê ficou louco, rapá? Onte mesm ele mandou te prendê e agora tu se enfia na cova-do-leão?
   - É por isso mesmo que eu fui lá avisá pra ele que tá pra nascer um cabra macho que vai me impedir de desafiar o escravo. E mais, mandei ele vir aqui na praça pra falar com esse povaréu que o Tião aqui é cabra pra lá de macho e nem ele nem o sô delegado vai me impedir de subir essa serra hoje e pegá os diamante do escravo, tão intendendo?
   - Cê disse isso tudinho assim   pro   prefeito   mesmo? - Perguntou Sandoval com ar de ironia.
   - Tim-tim por tim-tim, palavra por palavra.
   - Pela cara dele aí atrás num tá parecendo não.
   Tião deu um pulo quase sem cor e se virou para o prefeito parado a alguns passos.
   - Se...seu pre.. prefeito?!? - Gaguejou ele quase sem voz.
   - Sempre contando suas estórias não é, meu rapaz?
   - S’impolga não, seu prefeito, esse cabra não tem papa na língua. - Justificou Remundão.
   - Mas o que traz de volta uma pessoa tão fina na minha humilde casa, seu prefeito? - Zombou Manuel se derretendo em cordialidade.
   - Na verdade vim aqui para incentivar esse cabra que resolveu desafiar o escravo Isidoro hoje.
   - E o sinhô num vai proibir?
   - Não, não. E pra provar que estou de acordo, vou subir naquele carro de som e oficializar o desafio e anunciar o apoio da prefeitura à coragem desse rapaz que trouxe a esta cidade uma nova visão do turismo. Espero vocês todos lá na praça, está bem? - Disse o prefeito se despedindo do grupo.
   Manuel se derretia de satisfação com tanta gente entrando e saindo do seu estabelecimento. Dona Ambrosina havia se tornado funcionária oficial do boteco e corria de um lado pro outro pra atender tanta gente.
   - Sandoval, ajuda aí né, meu fí! - Dizia ela toda vez que passava perto do rapaz que não largava do copo de pinga. Vez por outra ele se levantava e dava uma mãozinha para ajudar a servir os fregueses que pareciam se multiplicar a cada hora.
   - De onde será que saiu tanta gente assim, meu Deus!
   - S’impolga não, Dona Ambrosina. Até o fim do dia isso aqui vai virar um furdunço de tanto cabra.
   - É Manuel, mió pedir mais cerveja que essa num vai dá não, sô.
   - Já pedi pro Zé da Cachaça trazer mais umas caixa de cerveja e...
   - Ihhh foi só falá no bendito que  ele já     chegando. - Disse Sandoval vendo o projeto de jipe parar na porta do boteco, fazendo uma barulheira infernal.
   E assim foi a tarde toda em Curralin. Gente pra tudo que era lado. O pequeno lugarejo quase não comportava o número de pessoas que se espremiam pelas ruelas apertadas num vai e vem interminável. Grupos de batucada e até uma passeata de protestantes em favor dos direitos dos fantasmas escravos que até então ninguém nunca ouvira falar, surgiu carregando faixas e cartazes pela praça. Enquanto isso no bar do Manuel, as apostas iam subindo cada vez mais em favor do escravo Isidoro, mas Tião parecia não se importar com isso. Continuava contando suas façanhas pelo mundo afora e se gabando de sua macheza como se nada tivesse acontecendo.
   Enquanto isso, o prefeito desfiava seu rosário na praça, declarando oficialmente aquele dia como “dia municipal do desafio”, dizendo que isso iria incentivar os cidadãos curralinenses a buscar seus objetivos, superando suas próprias limitações e que assim que se tornasse deputado mandaria um projeto de lei para a câmara tornando aquele dia de feriado em feriado nacional. E o prefeito Zequinha falava com tanta seriedade que uns poucos eleitores puxa-saco do partido, que ainda teimavam em prestar atenção no discurso, começavam a achar que era verdade e até batiam palmas histericamente. Mas no fundo, ninguém mais parecia interessado na lengalenga daquela prosa toda. O trem tava bão mesmo era no meio da muvuca, nas batucada cheia de gente bonita e nas conversa boba rua afora, afinal de contas, aquele era o grande dia que marcaria mais um capítulo na história do pequeno lugarejo incrustado no meio da serra, onde tudo podia acontecer. O coitado do Isidoro é que não ia gostar nem um pouquinho de saber que todo aquele forfé era por conta das ideia atravessada de um cabra infeliz que resolveu atiçar sua cova e assombrar seu espírito só pra mostrar sua macheza. O cabra do Tião podia até tá arrependido, mas agora era tarde demais para desistir, afinal, de contraventor por falsidade ideológica passou a ser aliado do prefeito para o bem comum da cidade. Havia se tornado um herói, e herói que se preza não foge de um assombraçãozinho à toa. O trem já tinha começado a feder e só faltava agora saber o que o cabra da peste da televisão que perdeu o lugar pro Tião ia aprontar depois de ser passado pra trás.
   Não deu outra. O cabra, inconformado com a situação subiu a serra e começou a cavucar no meio das pedras, quando uma baita dor de barriga lhe pegou de jeito. O pobre coitado saiu correndo aperreado com as calças na mão e quase se atirou detrás d’uma moita, numa grota a poucos metros do cruzeiro do Isidoro. Enquanto fazia o “serviço”, ficou observando cabreiro o candeeiro enferrujado do escravo.
   - Se tu pensa que tenho medo de fantasma, tá muito enganado, viu? Se tiver diamante aqui eu vou achar e não vai ser uma dorzinha de barriga que vai me impedir não, tá me ouvindo? - Resmungou o rapaz rindo de si mesmo. Uma pedra rolou barranco abaixo, parando ao seu lado, próximo a moita. O sujeito olhou aquilo e se pôs a levantar. Olhou em volta à procura de algo pra se limpar e como não achou, puxou as folhas da moita, arrancando toda ela do chão, com raiz e tudo.
   - Caramba, meu. Que diacho de coisa brilhando é isso ali? - Perguntou pra si mesmo, vendo surgir na terra algumas pedrinhas brilhantes. Pegou-as na mão e depois de observar por alguns segundos, pensou: Ah se isso tudo fosse diamante... mas é só vidro quebrado, droga. Pensando bem, isso me deu uma boa ideia.
   O cabra, sem saber que se tratava dos diamantes verdadeiros do escravo Isidoro, juntou tudo, enfiou dentro do bolso e fincou morro abaixo. Desceu a serra cheio de caraminhola na cabeça, feliz da vida, pois ia dar o troco naquele impostor safado.
   Assim que o rapaz deixou o cruzeiro do Isidoro em direção à Curralin, o assistente do prefeito chegou meio ressabiado e vendo o cabra correr serra abaixo, coçou a cabeça incucado.
   - Mas que diacho esse cabra da peste veio fazer aqui em cima? Ainda bem que num tem diamante nenhum nesse lugar, senão podia jurar que esse infeliz veio procurar. - Resmungou pra si mesmo. - Deixa pra lá, só vim mesmo é pegar esse candeeiro velho antes que escureça e levar pro Tião “boca-de-fogo”. Assim, ele finge que desafiou o escravo Isidoro, ganha a aposta e todo mundo fica feliz. - Completou o assistente passando a mão no lampião enferrujado e fincando caminho de volta.                                
                            
                                                                       Continua na próxima semana!!!